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Impacto da inclusão dos Transtornos do Espectro Autista (TEA) no Censo Brasileiro: abordagem essencial e urgente para políticas públicas

Em qualquer plano de desenvolvimento de estratégias para atendimento, intervenção e redução de problemas relacionados à saúde pública conhecer os perfis clínicos, sociais e comportamentais de uma determinada condição e sua consequente magnitude na população geral é essencial e imprescindível. Como planejar, gerir recursos, dimensionar prioridades e arquitetar redes de suporte sem buscar dados específicos, mapear índices e, enfim, familiarizar-se com o problema-alvo em questão?
A exemplo de várias doenças no Brasil que, há anos, vem sendo priorizadas nos planos de prevenção e de tratamento como as doenças prevenidas por vacinas, a dengue, a hipertensão arterial e o diabetes, temos uma nova condição que deveria ser incluída no rol de pesquisas epidemiológicas: o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
O TEA é um distúrbio de desenvolvimento onde ocorre uma reorganização anormal em várias regiões do cérebro e em momentos distintos do desenvolvimento inicial da criança com enorme variabilidade de consequências clínicas, maturacionais, comportamentais e sensoriais de pessoa para pessoa podendo resultar num heterogêneo e complexo conjunto de sinais e sintomas que, em geral, pode ser caracterizado por problemas significativos de interação e comunicação sociais e comportamentos atípicos com excessivos interesses restritos e ações repetitivas sem nexo com o contexto.1,2,3 Ocorre aproximadamente em 1-2% das crianças e sua evolução é crônica e persiste até à fase adulta levando a impactos negativos e expressivos em vários eixos da vida da criança e adolescente e no adulto.4,5
Impressiona o aumento exponencial da incidência e da prevalência do TEA em todo o mundo. Segundo dados mais recentes do CDC-USA e da OMS (https://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html) houve um aumento, entre crianças até 8 anos, de 3.5 vezes na prevalência de autismo de 2001 a 2011.6 Neste século, já temos os dados de que para cada 59 crianças que nascem uma desenvolve autismo.1,4,6
Este crescimento, até o momento, é explicado pela maior disponibilidade de informações e conhecimento geral sobre o tema e a identificação dos seus sinais junto à outras condições médicas, antes ignorados.7,8,9 Outros fatores de risco que podem estar contribuindo para o aumento também é a idade cada vez mais tardia de optar por uma gravidez (pais acima de 35-40 anos), nascimento prematuro, baixo peso ao nascer, intercorrências perinatais e a associação do espectro autista com outros transtornos de desenvolvimento, neuropsiquiátricos e síndromes.10,11,12
Sabemos que o TEA pode ser causado por fatores genéticos e ambientais com predomínio dos primeiros e herdabilidade em torno de 76%.13 Mesmo assim, várias pesquisas vem demonstrando a possibilidade de haver processos ambientais dispersos em nosso meio que podem agir como gatilhos e levar a modificação do funcionamento do gene, os quais chamamos de mecanismos epigenéticos.14,15 Enquanto desconhecemos estes gatilhos e os processos genético-ambientais, urge, em nosso meio, a necessidade de direcionar nossos esforços para a identificação precoce (antes dos 2 anos de vida), estratégias comportamentais e desenvolvimentais de tratamento e de suporte transdisciplinar do TEA.1
Por levar a uma enorme variabilidade de sintomas resultantes de atrasos de desenvolvimento social, linguístico, sensório-motor e de capacidade cognitiva e comportamental, seu manejo é complexo e exige mecanismos que devem ser acionados em várias etapas da vida.16,17 Portanto, são muito diferentes de acordo com o momento do diagnóstico, com o perfil clínico e desenvolvimental e que, assim, envolvem ações farmacológicas, interventivas, institucionais (tanto na saúde como na educação). Além disto, para sua excelente concretização, depende da dedicação constante de seus pais, professores e a presença de profissionais especializados para implementá-los.18
No que tange aos profissionais especializados, devemos considerar algumas características que, no cotidiano, não se mostram tão claros. Ainda não existe, em nosso país, formalmente o que podemos chamar de “especialista em autismo”. Nossas faculdades e universidades não o preveem nem tampouco estão preparadas para formá-los. Não existem ementas padronizadas. Todos os profissionais que se propuseram a sê-lo, tornaram-se por meios autodidáticos ou por pós-graduações que oferecem algumas aulas ou projetos de extensão por iniciativas dispersas ou voluntárias. Este fator é extremamente preocupante pois as evidências científicas vem demonstrando que os processos terapêuticos mais eficazes para modificar e/ou reduzir efetivamente o TEA passa por diagnóstico precoce, intervenções intensivas, direcionamento das ações para os sintomas autísticos e abordagens naturalísticas assistidas e sistematicamente aplicadas.19 Em todos estes, a presença de um grupo ou atendentes com perfil especializado é fundamental o que exige número adequado destes profissionais, espaços equipados e preparados e disponibilização dos cuidadores para implementação de estratégias nos mais diversos lugares e contextos.20
O autismo pode se apresentar clinicamente em três níveis de intensidade: leve, moderado e severo.21 O leve depende muito pouco de suporte e tem autonomia relativa em quase tudo que faz e onde vai sendo necessário apoios pontuais nas habilidades sociais e nos processos de linguagem e de aprendizagem escolar. O moderado é mais dependente necessitando de cuidados de terceiros para controlar suas estereotipias, ajudar na comunicação, pouca noção de perigo, autocontrole e inabilidade para lidar com processos sociais. O severo, por sua vez, é totalmente dependente e inábil para qualquer atividade necessitando intensivamente de cuidadores. Estas diferenças fazem com que os efeitos neurológicos, sociais, cognitivos e comportamentais sejam extremamente heterogêneos. Consequentemente, cada criança (ou adolescente ou adulto) deve ser avaliada de forma peculiar e trabalhada de forma muito específica em vários contextos: em casa, nas clínicas, na escola e nos atendimentos comunitários.
Dependendo do grau dos sintomas e dos prejuízos, o impacto na família pode ser devastador. Vários artigos científicos e pesquisas populacionais vem mostrando que famílias de pessoas com autismo apresentam mais sintomas de ansiedade, depressão, distúrbios do sono, separação conjugal, queda do nível de renda, problemas com os irmãos, acidentes e hospitalizações, histórias de maus tratos e abusos psicológicos e sexuais, isolamento do núcleo familiar, perda de intimidade do casal, etc.22,23,24,25,26 Os leves podem também levar a prejuízos similares por trazer, em seu quadro clínico e cognitivo, determinados comprometimentos que podem levar a reduções de funcionalidade que acarretam variados problemas na escola, nos ambientes sociais da comunidade e na inter-relação destes com seus pares da escola e irmãos.27
Outro fator que ressalta a peculiaridade do TEA é a presença das comorbidades (85% dos casos podem ter de dois a cinco distúrbios que se associam ao TEA).28 Comorbidades são condições que se associam e podem aumentar o impacto do autismo, os prejuízos cognitivos e comportamentais, e intensificar inabilidades sociais e os processos inerentes aos passos críticos da aprendizagem escolar. As comorbidades mais comuns são Deficiência Intelectual, Deficiências auditivas, TDAH, TOD, Epilepsia, Transtorno de Ansiedade/Fobia Social, TOC, Tiques, Esquizofrenia, Distúrbios de Linguagem, intolerâncias alimentares e alergias das mais diversas naturezas e localizações além associação com várias síndromes genéticas e malformações físicas e cerebrais.29 Apenas uma comorbidade numa pessoa com TEA exige um manejo terapêutico diferente e customizado com uso de medicações e intervenções clínicas específicas onde muitas vezes necessita-se aumentar número e amplitude de determinadas terapias e modificações de dosagens farmacológicas por profissionais mais experientes sempre em sintonia com a família e a escola.
É evidente, portanto, que a identificação e a presença constatada de autismo numa pessoa exigem um aparato e uma rede de atendimento tanto no campo da saúde e da educação quanto na área de serviço social. Nos EUA – um país que tem a liderança mundial nas pesquisas e nas ações com o TEA – estimam-se que uma família gasta, em média, 2.000 dólares mensais para manter as necessidades materiais básicas e o estafe de atendimentos de seu filho com autismo sem contar o tempo semanal dispendido e o estresse.1,13 No Brasil, não temos sequer dados amplos e globais sobre o tema. Para conhecer vagamente o número de pessoas com autismo por aqui costumamos “importar” dados americanos e seus índices. Não temos os nossos. A preocupação aumenta ainda mais se considerarmos nossa vigorosa desigualdade de renda e de acesso a serviços especializados os quais são escassos, mal distribuídos e inseridos numa realidade bem mais precária.
Os pais/cuidadores e profissionais da área tem plena consciência de que vivemos numa realidade severamente negligente aos cuidados mais importantes para estas pessoas e todos estão expostos a serviços clínicos de má qualidade, falta de assistência na escola, terapias sem qualquer suporte científico e charlatanismos pondo em risco o potencial cognitivo-intelectual de seu filho e, muitas vezes, de sua vida. Além disto, ainda impera em muitos profissionais médicos e não médicos mitos e equívocos que atrasam o diagnóstico (em nosso país, demora-se em fechar o diagnóstico em até 36 meses a partir de uma primeira procura!30), desestimulam a busca precoce por tratamento pois transmite a imagem de que o autismo é uma “moda” constrangendo muitos pais que procuram uma primeira avaliação preocupados com o filho que apresenta algum atraso de desenvolvimento ou comportamento “estranho”. Desencorajados, postergam a procura e se culpam por acharem que o filho pode ter autismo…
Enfim, com toda a descrição e a problemática apresentadas, os números crescentes observados, e os desajustes e carências, como corrigir e equalizar o acesso e a oferta de serviços e cuidados? Ora, a adoção de um sistema de políticas públicas interministerial e interdisciplinar baseada em estratégias embasadas e proporcionais às necessidades vigentes! Mas, sem uma base estatística e numérica para alicerçá-las, será impossível fazê-las num país tão grande e heterogêneo, e tampouco oferecer suporte nas mais diversas regiões, cidades e eixos de assistência onde se requer profissionais, atendentes, ambientes específicos, materiais, medicações e meios presenciais de capacitação e atualização. Pelos impactos significativos que traz em seu bojo, tanto a curto quanto a longo prazo, a inclusão do TEA no próximo censo é extremamente urgente e requisito básico para qualquer outro passo que se reivindique em direção ao suporte adequado destas pessoas e de suas famílias.

Dr. Clay Brites, PhD. CRM-PR 16787

Neurologista Infantil do Instituto Neurosaber

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5 respostas em “Impacto da inclusão dos Transtornos do Espectro Autista (TEA) no Censo Brasileiro: abordagem essencial e urgente para políticas públicas”

Realmente, os dados sobre o autismo, são insuficientesó. Se faz necessária a ampliação das pesquisas relacionadas ao tema, como também, um preparo maior dos profissionais tanto da educação quanto da área de saúde, para atuar junto às pessoas com autismo e suas famílias além de políticas públicas voltadas à assistência à este público.

Olá Marilena ,
Acesse nossos canais, temos muitas informações importantes lá que podem ter respostas a todas as suas dúvidas. Vale a pena conferir!!!
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Olá pessoal,
Gostaria de agradecer por este belo artigo, somos estudantes de graduação em Design na PUCPR e este artigo (e o site inteiro também!) fornece informações muito importantes para o nosso projeto que consiste em ‘facilitar a transição de crianças com autismo e distúrbios comunicativos para o estágio pós-operatório.’
Agradeço pelo excelente trabalho e pela distribuição do conhecimento 🙂

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